Mais de 74% da população brasileira está com o primeiro ciclo vacinal contra a Covid-19 completo -e aqueles que tomaram a dose de reforço superam 34%. Para parte desses imunizados, porém, as doses não constam corretamente no ConecteSUS, plataforma do Ministério da Saúde.
Pessoas de sete cidades em seis estados relataram à Folha que o passaporte vacinal do governo ainda está deficitário ou que foram necessários meses até que a falha fosse corrigida. Entre os relatos ouvidos pela reportagem, há casos de doses cadastradas meio ano após a aplicação, apesar de contatos constantes com a secretaria de saúde municipal e o SUS para o preenchimento do registro.
O governo federal diz que o aplicativo ConecteSUS Cidadão apenas reproduz o que está documentado nos sistemas de informação dos estados, municípios e do Distrito Federal.
Em 10 de dezembro, um ataque hacker ao site do Ministério da Saúde deixou fora do ar os sistemas de informações de notificação de casos, internações e mortes, além dos dados de vacinação. Levou semanas para que as plataformas fossem restabelecidas.
Há pessoas que estão sem as vacinas preenchidas no ConecteSUS, no entanto, que foram imunizadas antes do ataque cibernético. É o caso de Maria Luiza Rios, cuja segunda dose, aplicada em 10 de novembro, ainda não consta no sistema federal.
Estudante da UEPG (Universidade Estadual de Ponta Grossa), ela diz que pelo menos outros sete colegas têm o mesmo problema. “Todo mundo dessa mesma época de vacinação não está conseguindo.”
O passaporte vacinal incompleto deixou a jovem apreensiva em janeiro, já que era necessário apresentá-lo para a matrícula do semestre. No fim, a aluna de educação física mostrou o documento impresso e conseguiu assistir às aulas, que começaram no início de fevereiro.
Quem também enfrentou falha no sistema antes do ataque hacker foi Rafaela Blacutt, em Florianópolis. A sua primeira dose, aplicada em 10 de agosto, só foi aparecer no ConecteSUS em fevereiro, após um longo caminho burocrático.
Primeiramente, ela procurou o SUS e foi orientada a ir ao local onde foi imunizada. Lá constataram que seus dados vacinais foram preenchidos corretamente, e que o problema estaria no sistema federal.
A catarinense abriu então um chamado na ouvidoria do SUS e ficou sem retorno por semanas. Dois meses depois, uma atendente informou que não poderia ser aberto um segundo protocolo e que o correto seria esperar a solução do problema.
Blacutt explicou à profissional que queria fazer uma viagem internacional e precisava do passaporte vacinal atualizado. Como embarcaria em uma empresa aérea estrangeira, o comprovante impresso em português poderia não ser aceito. A resposta, ela lembra, foi: “Infelizmente você vai ter que cancelar a sua viagem”.
A catarinense só conseguiu ter a primeira dose da vacina em seu ConecteSUS após preencher um formulário da Prefeitura de Florianópolis para correção de problemas semelhantes.
Há relatos também de falha no preenchimento. Para Brunna Moreira, que se imunizou em São Gonçalo (RJ), a segunda dose só foi constar no passaporte vacinal semanas após ser aplicada, no início de fevereiro. A questão é que ela aparece como dose de reforço.
Na capital paulista há outro caso curioso. Uma jovem, que não quis se identificar, procurou o 156, portal de atendimento da Prefeitura de São Paulo, porque sua segunda dose não constava no passaporte vacinal. O órgão a orientou a procurar o local onde foi imunizada.
Como o ponto de vacinação fora desmobilizado, a moradora de São Paulo procurou a UBS (Unidade Básica de Saúde) responsável pela área. Lá, o funcionário mostrou que constava no sistema de preenchimento do governo federal apenas a segunda dose, e não a primeira. O que era o contrário do que aparecia em seu cadastro no ConecteSUS.
A jovem recorreu novamente ao 156, que sugeriu falar com o SUS. Ao abrir um chamado no órgão federal, ela foi orientada a procurar o local onde foi imunizada. Se não desse certo, deveria falar com o setor responsável pelo envio das informações de vacinação para a RNDS (Rede Nacional de Dados em Saúde).
Ela buscou a Secretaria Municipal de Saúde e pediu o contato do tal setor indicado pelo governo federal. A orientação, então, foi falar com a Covisa (Coordenadoria de Vigilância Sanitária), que a instruiu a mandar um email para a Coordenadoria Regional de Saúde.
Só assim o problema foi resolvido, mas não antes de a jovem cobrar o órgão por ficar semanas sem resposta.
O autor desta reportagem, morador da capital paulista, enfrentou percalço semelhante. A dose de reforço, aplicada em 18 de dezembro, foi registrada no ConecteSUS após exatos três meses e algumas cobranças.
Ao ligar para o setor responsável pelo sul da cidade, onde fica o posto em que se imunizou, a atendente informou que nada poderia fazer a respeito e que apenas o governo federal conseguiria corrigir a falha.
A profissional também disse que outras pessoas haviam procurado o setor com problemas semelhantes. O registro apareceu no mesmo dia em que a Secretaria Municipal de Saúde foi questionada para a reportagem.
No Distrito Federal, Raquel Amaral teve sorte com seu passaporte vacinal. Ela tomou sua dose de reforço em 26 de dezembro e por semanas ficou sem a informação no ConecteSUS. A turismóloga descobriu que o sistema estava correto em sua viagem para Fortaleza, na primeira quinzena de fevereiro.
“Lá estavam pedindo o comprovante de vacina. Quando eu fui entrar numa barraca na praia, vi que tinha esquecido no hotel. Daí abri no app e vi que estava atualizado”, explica.
Em nota, o Ministério da Saúde afirma que os sistemas estão normalizados após o ataque hacker, em dezembro. A pasta afirma que o aplicativo ConecteSUS Cidadão espelha o que é documentado nos sistemas de informação dos estados, municípios e do Distrito Federal.
Caso a pessoa não tenha a vacina registrada no app em até dez dias, ou se a anotação estiver errada, o ministério orienta “procurar o local de vacinação ou as Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde”.
“O usuário pode acessar o suporte no próprio aplicativo, através do menu ‘Fale com o Conecte SUS’ e pelo email suporte.conectesus@saude.gov.br”, conclui em nota a pasta.
A Fundação Municipal de Saúde, de Ponta Grossa, afirma que, após o ataque hacker, informações de algumas pessoas sumiram e que é necessário atualizar os dados no sistema. O órgão orienta quem tem problemas com o registro das doses a procurar o Departamento de Imunização e da Atenção Primária da cidade.
A reportagem não conseguiu entrar em contato com a Secretaria de Saúde e Defesa Civil de São Gonçalo (RJ) pelos telefones que estão em seu site.
A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo diz que as UBSs preenchem os dados de imunização no sistema estadual VaciVida. “Em caso de inconsistência vacinal no registro do passaporte da vacina ou certificado digital, o munícipe deve, em primeiro lugar, procurar a unidade de saúde para verificação do registro no sistema VaciVida, com o objetivo de identificar possíveis erros no cadastro”, orienta, por meio de nota.
Caso não haja erro na plataforma paulista, a pasta municipal recomenda ao morador que procure a Secretaria do Estado de Saúde de São Paulo pelo telefone 0800-555-46.
E para quem, como Blacutt, quer ou precisa realizar uma viagem internacional, funcionários da Latam e da Gol informam que qualquer comprovante de vacinação é aceito para embarque em voos para fora do Brasil, inclusive o que é entregue no posto de vacinação.
Há também governos municipais e estaduais que disponibilizam comprovantes próprios, tanto em português quanto em inglês e espanhol.